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Sobre as coisas que não entendemos bem


Sobre as coisas que não entendemos bem

Por Cássia Pérez


Em 1974, Caio Fernando Abreu escreveu “a única magia que existe é estarmos vivos e não entendermos nada disso. A única magia que existe é a nossa incompreensão”. Presente em seu livro Ovelhas Negras, esse trecho é parte do seu diário escrito no exílio, momento em que a incompreensão se torna latente e dá lugar à confusão, seja de sentimentos ou de fatos. A grande diferença entre a incompreensão e a confusão é, na verdade, a aceitação: a incompreensão é aceita, assumimos o que não compreendemos, vamos acumulando incompreensões em todas as áreas da nossa vida, conscientes que elas existem e convivem conosco; já a confusão não, é impossível de aceitá-la, lutamos para compreendê-la, torna-se um empecilho em nossa vida que nos persegue e atrapalha. Caio Fernando, em seu exílio, já acumulava confusões suficientes em seu momento, e de tão subjetivas e cheias de possibilidades, formaram da grande incompreensão, a única magia que existe. 

Quase meio século depois de Caio Fernando Abreu ter escrito esse trecho, ainda nos deparamos com a incompreensão, com a confusão, com a aceitação. Os processos mudaram de velocidade conforme a sociedade se inclinava para uma dinâmica em rede pautada pelas tecnologias de informação, o tempo mudou junto com a velocidade, nos permitimos passar pelas etapas em um piscar de olhos e atribuímos responsabilidades desses processos a figuras de poder, nos isentando muitas vezes de uma busca por um entendimento que nos leve à incompreensão mágica que Caio Fernando um dia encontrou. Hoje temos acesso ilimitado à informação, nos possibilitando inúmeros questionamentos e infinitas perguntas sobre todos os assuntos que existem, está tudo na palma das nossas mãos e ainda sim não sabemos nem por onde começar. Pensar tornou-se difícil, custoso, perigoso. A ignorância veio de presente com esse excesso de informação e nos atinge por todos os lados, fazendo com que algumas figuras ganhassem relevância sem serem convidados e, uma vez que estavam lá, já não sabemos mais como aconteceu. Ignorância e incompreensão são ações completamente diferentes: a incompreensão demanda muito pensamento, espaço mental e processos que nos levem a aceitar nosso lugar de não entender, para não entender algo é necessário reconhecer o que é, analisar para, por fim, aceitar a incompreensão; já a ignorância não depende desse processo todo, ela é alienada a ponto de não necessitar de conhecimento sobre as partes desse processo, é fácil de ignorar que coisas existem quando se assume o lugar da ignorância.

Para tanto, aqui ficaremos com o lugar da incompreensão. Aqui é sobre as coisas que não entendemos bem. A produção da artista catarinense Celaine Refosco nos ajuda nesse caminho por essas coisas até que evolua para a aceitação de que não entenderemos bem ou não entenderemos nada. A subjetividade que a arte nos proporciona foi muito perseguida por essa dinâmica da sociedade da informação, ela nos dá munição para que o processo de questionamento entre em curso, nos levando para o caminho da incompreensão. A presença da subjetividade pode ser extremamente danosa, perigosa até. O que nos é dado por essa sociedade são conjuntos de respostas prontas, rápidas e fáceis que nos permitem caminhar para a ignorância, analisar cada vez menos, passar para a próxima resposta com velocidade cada vez mais rápida sem tempo de vislumbrar outras possibilidades. Já a arte cria pausas, lacunas, pontes, direções... muda o tempo, desacelera e acelera quando necessário. São as mais diversas ações que a arte pode proporcionar quando nos permitimos ser contaminados por ela.

A arte entra nessa categoria de coisas que não entendemos bem. A verdade é que não importa seu grau de conhecimento, o quão especialista ou leigo você seja, a arte nos dá uma quantidade infinita de possibilidades, depende do contexto, depende de quem a vê, de quem a produz, de como está apresentada, de como é observada, de como é lida.... são tantas as variáveis para a arte. Aceitar que nunca poderemos esgotar essas variáveis é um começo. Pode ser que eu, como curadora, tenha uma visão específica da exposição, te apresente meu ponto de vista dessas obras com argumentos sólidos que permitiram que essa mostra se formasse e nenhum deles te toquem, mas no momento em que ocorrer o contato com as obras te apareçam mil e outros pontos de vista que nunca me ocorreram. O simples fato da busca e trajetória de cada pessoa ser individual, pautada por elementos que formam a natureza de cada um, vem à tona com esses contatos com a subjetividade. Quanto mais estudo arte, sinto que menos sei sobre ela. Posso passar incontáveis horas discutindo, me aprofundando, mas a mágica da incompreensão está sempre presente. A arte se torna uma contradição: ao mesmo tempo que não nos dará nenhum tipo de certeza e nem pensamentos concretos, dá a oportunidade de nos debruçarmos na nossa falta de entendimento; roubo aqui as palavras de Mario Pedrosa que dizia que a arte é “um exercício experimental de liberdade”, te liberta de qualquer responsabilidade com as verdades inquestionáveis e faz um convite para um campo de perguntas para os quais possivelmente nunca encontraremos respostas. Não tem utilidade prática se a encaramos a partir do ponto de vista da sociedade atual e, ao mesmo tempo, é extremamente necessária para que se torne possível ultrapassar tudo que nos é dado como certo, e que na verdade nos limita.

Celaine Refosco nos convida a nos debruçarmos nesse campo de incertezas com as suas obras. Ao adentrar a exposição rapidamente nos deparamos com todo tipo de cor, forma, suportes e percepções. Em apenas um olhar notamos que essa junção de elementos deixa a sala colorida, iluminada e, mesmo sem nos debruçarmos em cada obra, já percebemos a mudança de temperatura do local. Será a temperatura real ou a nossa temperatura? Se for apenas dentro de nós, significa que não é real? O que é real? Logo de cara enfrentamos coisas que não entendemos muito bem, te aconselho a se deixar levar por elas. A cabeça já condicionada fará uma varredura em alta velocidade nessas perguntas buscando respostas já prontas, sensos comuns que possam satisfazer a curiosidade despertada nessa primeira impressão. Tente focar no que é sentido e deixe de lado as explicações lógicas que possam surgir, talvez essa seja uma possível entrada nesse caminho para a incompreensão que amplifica.

A artista nos provoca a ter esses questionamentos, sabendo que nos trará conflitos internos. Que coisas são essas que não entendemos bem? De primeira podemos achar que é um deboche da parte dela, uma tentativa de nos demonstrar que sabe mais do que todos nós. Mas veja bem, coisas que não entendemos bem.... entendemos, no plural. Não somos só nós que não entendemos bem, ela também se inclui nessa conta. As perguntas que nos surgem podem não ser as mesmas que surgem para ela, mas temos a certeza de que os questionamentos não cessam nem para ela que é a artista. Pelo contrário, ela permite que esses questionamentos a levem adiante, que impactem a sua produção e seu cotidiano. 

Voltando para a temperatura da sala. As cores nos esquentam, então com esse conforto climático/sentimental é possível continuar a olhar tudo com mais conforto. Olhar, ver, sentir, uma junção de verbos que se tornam possíveis ao nos aproximarmos das obras da exposição. Notamos rostos, muitos rostos. Sobreposições de rostos. Os títulos são inúmeros nomes, Elza Flora Nelci Elvira Anna, Janaina Irany Crista Utta Antônia, Pedro Jurema Hanna Ari Henrique Efren Enzo, nos forçamos a identificar nas pinturas quem pode ser cada um daqueles nomes. Para que forma lhes é atribuído? Cada um de nós poderá especular da maneira que preferir.

Também se percebem formas em um grande tecido branco. Estão recortadas tornando possível perceber a sua movimentação, a incidência de luz, as sombras.... a cada percepção novas conclusões, a cada conclusão novas perguntas. Seriam pessoas? São as mesmas das pinturas? Outra obra é composta por um grande tule, nele as formas parecem invadir o tecido, grudaram nele até tornarem-se bidimensionais, voltando à vida conforme orbitamos com o olhar por ela: nos sentimos observados por essas formas, as vezes é como se pudéssemos ouvi-las respirando ali dentro. Seria esse tule um ecossistema? Teria ali vidas construídas, mundos próprios que mantém essas formas estáticas para nossa percepção e ativas para nosso olhar? 

Mas não apenas percebemos formas específicas, notamos também cores e texturas que nos lembram paisagens nostálgicas. Ativam uma memória que não sabemos se é real ou não, se vivemos nessa vida ou em outra. Essas junções de natureza, formas, personas, cores, texturas, tudo isso formam as coisas que não entendemos bem. Se aproximarmos essa discussão para a arte em si, é possível discutir sobre essa bidimensionalidade que forma uma camada tátil nas pinturas, nos faz entrar profundamente no que ali está representando como se fizéssemos parte daquele espaço proposto pela tela. Podemos ver representações pictóricas da natureza, que não precisam se ater a meras figurações, partindo para um contato mais profundo com a subjetividade. Os materiais de algumas pinturas são curiosos: não se limitam à tinta sob tela, são utilizados como matéria prima elementos encontrados na natureza que, ao serem manipulados pela artista, fazem a vez das tintas industrializadas que permitem uma rápida associação à prática da pintura. A pesquisa material não se limita apenas às pinturas em tela, avança para os tules, para os panos. Notamos o desenho como fio condutor para que seja possível extrapolar suportes já reconhecidos: é possível perceber nos traços uma movimentação típica de um lápis sendo direcionado por uma mão atenta. Nas figuras recortadas de Estados da Matéria a fluidez dessa movimentação não nos dá uma memória de lápis em superfície tão de imediato, é preciso tomar o tempo para ir percebendo essas nuances ali presentes. A mão de quem o executa é bastante presente, identificada coerência nesses traços, conseguimos ver as mãos da artista executando com tamanha fluidez que auxilia no frenesi que nos causa ao nos aproximarmos.

A discussão de materiais x suportes x técnicas pode se alongar por muitas e muitas linhas desse texto. As vezes demoro em perceber que essas são as percepções esperadas por quem passou anos estudando arte e nota esses elementos ali presentes. Não podemos nos esquecer que o foco aqui continua nas coisas que não entendemos bem. Mesmo identificando problematizações que se voltam à arte em si dentro das obras, precisamos dar um passo atrás: antes de achar interessante o uso de materiais incomuns na produção das obras, antes de discutir os elementos do desenho, a movimentação e fluidez, a superfície tátil, antes de qualquer uma dessas análises e muitas outras que são possíveis quando nos debruçamos na teoria da arte... começamos com as perguntas mais simples como ponto de partida: o que são os materiais? O que são os suportes da arte? O que nos faz nos vermos nessas obras? Quando pensamos nos materiais, percebemos que não são apenas tintas prontas compradas em lojas especializadas que formam a matéria prima para que ocorra a arte, são uma alquimia de componentes que formam cores, texturas, cheiros e mais até do que isso, possibilidades para que se possa executar o que se deseja. Nos condicionamos a aceitar que os materiais precisam ser industriais, que os processos de manipulação dessa matéria prima não nos cabem, ficamos com o produto pronto para realizarmos outros produtos. Da mesma forma os suportes, recorremos à tela como algo já nos entregue, com tamanhos específicos e formatos pré-determinados, o nosso entendimento nos faz navegar pela certeza desses formatos, materiais ou suportes sem ao menos nos darmos conta.

Percebe como temos certezas em todas as partes de nossa percepção? Da mesma forma quando questionamos a presença do desenho, logo nos vem à mente o ato de desenhar sob papel, com um lápis grafite formando linhas. Mesmo sabendo que o desenho é uma das formas mais antigas de expressão humana, só perdendo o primeiro posto para a comunicação oral, automaticamente pensamos em lápis e papel. Qualquer superfície permite que seja desenhada, existem inúmeras matérias primas que são capazes de riscar essas superfícies criando desenhos. As pinturas rupestres feitas na pré-história eram, antes de tudo, desenhos nas cavernas e paredes, mas também podem ser vistas como as primeiras formas de site specific’s uma vez que eram pensados para ocorrerem em lugares específicos e estratégicos. Note como a forma de análise pode impactar tudo: pinturas rupestres são pinturas, mas também desenhos, também site specific’s.... Quando damos lugar ao questionamento e mudamos o ponto de vista para longe do que já conhecemos, não existe nenhuma resposta pronta que nos satisfaça. No contemporâneo isso se torna um mote que move as discussões: as referências de cada um são os elementos que irão movimentar as percepções, variando de acordo com cada experiência individual, com o olhar daquele momento em que se propõe a ter o contato com as obras. 

A exposição de Celaine Refosco não apenas nos dá essa liberdade de questionamentos e sensações, mas tenta nos ajudar a nos permitir sentir, pensar, ver e todos os verbos que nos agradem para esse contexto. É possível se abrir para um olhar focado na arte, analisando as obras em si e como a exposição se configura. É possível uma análise do que sentimos ao nos percebermos no espaço expositivo, nos apropriando do que a artista nos entrega para uma aproximação com o eu. Em síntese, tudo é possível. Em um emaranhado de coisas que não entendemos bem, a caminhada para a incompreensão é quase tão importante quanto o destino final. Serão acumuladas perguntas, as respostas ficarão cada vez mais escassas. A nossa incompreensão se tornará a grande magia da nossa vida, tal como foi para Caio Fernando Abreu em 1974.


Por Cássia Pérez


Em tempos de alto fluxo de informação proporcionado pela tecnologia, assumir as coisas que não entendemos bem parece arriscado. Como podemos não entender se, na nossa mão, temos todas as respostas? O acesso é tão fácil, tão prático, bastam alguns clicks e temos soluções para tudo. Talvez a maior consequência dessa praticidade toda seja a ignorância: a preguiça de questionar respostas já prontas nos tornaram ignorantes uma vez que ganhamos tempo e perdemos processos importantes de análise, crítica, entendimento e de aceitação da incompreensão. Essas coisas que não entendemos bem são quase sempre colocadas de lado, retiramos toda a sua relevância para dar lugar ao que já é dado como certo, como se não valesse a pena o investimento de tempo e cabeça para solucioná-las.


No entanto, aqui nosso foco recai exatamente sobre essas coisas. São coisas, não precisamos necessariamente nomeá-las, nem precisamos entendê-las, o que precisamos é reconhecer a importância dessas coisas todas. As obras de Celaine Refosco nos oferecem caminhos para essa incompreensão, para aceitar que nunca saberemos tudo, que somos pequenos perante coisas muito maiores que também não precisam nos entender. A arte entra nessa categoria de coisas que não entendemos bem. A verdade é que não importa seu grau de conhecimento, o quão especialista ou leigo você seja, a arte nos dá uma quantidade infinita de possibilidades, depende do contexto, depende de quem a vê, de quem a produz, de como está apresentada, de como é observada, de como é lida... são tantas as variáveis para a arte. Aceitar que nunca poderemos esgotar essas variáveis é um começo.


A exposição não apenas nos abre para uma liberdade de questionamentos e sensações, mas tenta nos ajudar a nos permitir sentir, pensar, ver e todos os verbos que nos agradem para esse contexto. É possível se abrir para um olhar focado na arte, analisando as obras em si e como a exposição se configura. É possível uma análise do que sentimos ao nos percebermos no espaço expositivo, nos apropriando do que a artista nos entrega para uma aproximação com o eu. Em síntese, tudo é possível. Se nos permitirmos abandonar as respostas já prontas que nos são dadas, não existirão limitações para nossos questionamentos. No emaranhado das coisas que não entendemos bem, a caminhada para a incompreensão é quase tão importante quanto o destino final.




Sobre as coisas que não entendemos bem

Categoria

Exposição Individual

Data

15 de outubro a 30 de novembro de 2022

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