"Lançando mão de diferentes técnicas e linguagens, a artista cria um espaço de experimentação e liberdade no qual passa a formular suas questões, a partir do encontro com diferentes materiais. Disto resulta uma produção despretensiosamente heterogênea, que encerra mais a verdade de uma busca do que a fidelidade a uma poética pré-definida."
Por Icaro Ferraz Vidal Junior
Apresentar a produção de Celaine Refosco reunida nesta Crisálida requer alguns esclarecimentos sobre a natureza do gesto criador e sobre o trânsito da artista por suas diferentes modalidades. Uma nuance que se faz necessária, tendo em vista trajetória da artista na indústria têxtil, tem a ver com a diferença entre criatividade e invenção, que sua recente incursão nas artes visuais torna evidente. A criatividade é uma competência que pode ser desenvolvida por uma grande quantidade dos indivíduos. Ela vem sendo estudada por diferentes áreas de conhecimento e goza de grande prestígio em meio aos jargões do empreendedorismo que hoje invadem não apenas os modos de organização do trabalho, mas também as formas como os sujeitos contemporâneos pensam a si mesmos e sua presença no mundo. Mas a criatividade não se confunde com o gesto inventivo da criação, porque ela consiste na proposição de respostas a problemas já plenamente formulados. O criativo pode conceber soluções extremamente originais e contra-intuitivas, mas ele não pode criar, porque criar é criar o problema.
Após uma sólida trajetória na indústria têxtil e na formação de profissionais para a indústria criativa, Celaine Refosco aventura-se agora no domínio da invenção. Lançando mão de diferentes técnicas e linguagens, a artista cria um espaço de experimentação e liberdade no qual passa a formular suas questões, a partir do encontro com diferentes materiais. Disto resulta uma produção despretensiosamente heterogênea, que encerra mais a verdade de uma busca do que a fidelidade a uma poética pré-definida.
Assim, seus desenhos, pinturas e têxteis parecem se precipitar em uma solução na qual a artista e seu entorno imiscuem-se. Por isso, o espaço da casa-ateliê da artista, na cidade de Pomerode, não é um detalhe que se possa negligenciar na exegese de sua produção artística. Ali, no alto de uma colina, sentimo-nos parte de uma pintura expandida. As imagens criadas pela artista, ao mesmo tempo absorvem e se prolongam pelo ambiente doméstico adjacente e pela paisagem do entorno. Somos confrontados com uma impossibilidade das mais instigantes: a de definir fronteiras estanques ou etapas que delimitem os processos através dos quais a artista, sua casa e sua obra adquirem consistência. Quem nasceu primeiro, o arranjo de frutas sobre a mesa ou a natureza morta que vemos perto dele?
Pensar esta produção, parcialmente figurativa, como parte de uma poética processual e subjetiva apresenta alguns desafios, pois a figuração frequentemente aciona em nós uma expectativa representacional na leitura da imagem. Ao reconhecermos determinada forma em uma pintura ou em um desenho, tendemos a sair da imagem para operar no espaço mental da interpretação. Mas nas imagens de Refosco, a diversidade de temas figurativos funcionam como uma espécie de armadilha pois, em última instância, importa menos a discursividade da representação, do que a obra como resíduo de um processo através do qual a artista produz a si mesma, não como os românticos egocêntricos, mas em uma íntima relação com a transformação constante de seu entorno, de suas imagens e de sua subjetividade.
Há uma passagem na história da arte contemporânea que, a despeito de seu êxito comercial (ou talvez por causa disso), foi objeto de críticas bastante duras por conta de um suposto formalismo e do regime contemplativo que, em tese, instaurava com seu público aburguesado. Refiro-me ao informalismo que, em diversas partes do mundo, operou uma transição importante da ambição da pintura pura modernista para os conceitualismos das décadas de 1960 e 1970. Se as imagens de Refosco não remetem imediatamente ao informal, afinal, seus temas são frequentemente figurativos e seus processos de criação são, na maioria das vezes, mais meticulosos do que gestuais, há algo na inventividade de Celaine que o informalismo nos ajuda a compreender.
Refiro-me à ideia, argutamente formulada pelo crítico italiano Maurizio Calvesi, de que a obra informal é uma fatia de vida (une tranche de vie). São muitas as implicações deste diagnóstico, mas a mais importante delas é que esta ideia representou o abandono de uma suposta autonomia da arte, e contribuiu para o estreitamento das relações entre arte e vida. Não há na poética de Celaine, como não há no informalismo, espaço para a ideia de obra prima. Afinal, quando a arte se infiltra na vida, ela abandona toda finalidade predefinida. Na criação, em sua forma mais potente – a inventiva –, não sabemos de antemão onde desejamos chegar. Há algo nas imagens de Celaine que nos remetem às práticas meditativas, elas testemunham a impossibilidade de vivermos fora do tempo presente, tempo no qual a criação escoa como um rio, desapegada de sua nascente e sem ansiedade para chegar no mar.
As imagens meditativas de Celaine Refosco
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